Privilégios

Imagino a origem dos privilégios na procura de segurança, coisa muito básica. E, naquilo que a acompanha tanto, o medo.
Qualquer privilégio que tenhamos, vêmo-lo como natural e justo, não nos imaginamos sem ele -- e, quando se põe a hipótese de o perdermos, defendemo-lo como quem defende a Justiça. Porque a nossa segurança parece estar em causa, passamos a funcionar no nosso modo mais primitivo, mais irracional, o de sobrevivência.
Isto é o comportamento normal, ou seja, o mais frequente.
Durante a presidência de Lula, no Brasil, dezenas de milhões de pessoas saíram da miséria para uma situação privilegiada; anos passados, quando viram os seus privilégios em risco não hesitaram em apoiar Bolsonaro, atitude irracional, nascida do medo: normal.
Estamos num tempo em que é possível acabar com a miséria no mundo sem diminuir o bem-estar dos actuais privilegiados, dos que se não encontram na miséria. Essa enorme percentagem das populações do mundo, a que perderia um privilégio, por passar a ser normal a sua situação, como reagiria? Imagino que, se a sua situação se não alterasse, se se não sentisse ameaçada, não reagiria. No Brasil, a pobreza propicia a facilidade de encontrar trabalhadores a um preço muito baixo e a melhoria económica dos mais pobres mexeu com esse privilégio dos mais ricos, encareceu a mão de obra (ao mesmo tempo que também os mais ricos melhoravam, como toda a economia brasileira, por haver mais procura); mas desencadeou uma reacção emocional contra essa melhoria dos mais pobres, contra a perda desse privilégio que é a mão de obra barata, uma reacção de medo, do instinto de sobrevivência; reacção que, irracional embora, foi aproveitada para manipular a opinião pública até se chegar à eleição de Bolsonaro.
A ignorância, os actos que dela nascem, só diminui com o aumento de consciência das populações. E a consciência progride muito mais devagar que a técnica.
Devagar, sim, mas em movimento acelerado. Deixo, como exemplo, a reacção ao aproveitamento, pelo presidente Trump, do medo dos americanos de perder privilégios com a entrada de imigrantes (medo irracional, pois estes contribuem, e não pouco, para a riqueza do país), para favorecer as empresas de construção, criando um muro com o México -- e as dificuldades que o Presidente vai tendo em manipular a opinião pública:
O muro de queijo, uma instalação para ridicularizar o medo dos imigrantes.
A defesa dos privilégios terá origem no instinto de sobrevivência, no medo, mas não deixa de argumentar "racionalmente", apesar da sua origem irracional. Argumenta confundindo a ambição com o medo. A ambição de melhorar a vida é saudável, o ambicioso tem prazer em ver que lhe seguem os passos e melhoram também. A procura de privilégios, ou o medo de os perder, é outra coisa, nada tem de objectivo, de racional, nada tem de saudável, não passa de medo.
Só a consciência, a escolha do caminho civilizado, a recusa do irracional, feita por um número suficiente de pessoas, alterará o que tem sido a nossa História. Mas estes são tempos de mudança!

Comentários

  1. Repare no que escreveu,
    "Durante a presidência de Lula, no Brasil, dezenas de milhões de pessoas saíram da miséria para uma situação privilegiada; anos passados, quando viram os seus privilégios em risco não hesitaram em apoiar Bolsonaro.".
    Portanto qualquer pé rapado, se consegue subir na vida, não hesita em calcar o mais fraco, como ele era, mas já não é. A sabedoria popular há muito que sabe isso:
    "Não peças a quem pediu, nem sirvas a quem serviu..."
    Ora é com este modus operandi que imagina um aumento da consciência! Estamos conversados...

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    1. Não me parece que “ estejamos conversados “. A consciência está a aumentar, dou como exemplo o movimento “ Black Lives Matter“.Ele foi transversal a todos os grupos sociais e teve efeitos na legislação dos Estados Unidos.

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