um texto de Fernando Pessoa
Nestes raciocínios em que "demonstra" que a democracia não corresponde à opinião pública, falta analisar a Democracia autêntica, directa, a qual poderá espelhar a opinião pública, sensata e, embora instintiva, tolerante com a inteligência ;-)
Um conto inacabado de F. Pessoa:
Tirado de “pessoa plural” nº5
O Addiador:
um conto inédito de Fernando Pessoa
The following documents aim to give to the public a previously unknown and unpublished
short story by Fernando Pessoa: O “ddiador [The postponer]. This short story contributes to the global vision of Pessoa’s fictional oeuvre. The text reveals the complexity and denseness of the theme in question, postponement, working it in the context of art and artistic activity.
Palavras-chave
Fernando Pessoa, Addiador, Contos, Destino, Arte.
Resumo
Os documentos seguintes visam tornar público um conto inédito e inacabado de Fernando
Pessoa, O “addiador, cujo conhecimento contribui a completar a visão de conjunto da obra de ficção de Pessoa. O texto revela a profundeza e a complexidade da temática em questão, o adiamento, tratada no âmbito de considerações sobre a arte e a actividade artística.
Pérez López O Addiador Pessoa Plural: 5 (P./Spring 2014) 171
O Addiador
Quando, por fim, cheguei á estação, verifiquei, pelo horario, que o comboio ainda demorava uma hora e um quarto; pela informação humana, que ainda tardava duas. Decidi, com a violencia do desespero, dar uma volta lenta pela villa. Se a volta fôsse rapida, teria que dar varias, e ainda o comboio tardaria. Percorri, com uma lentidão impessoal, as ruas quasi vazias da aldeia crescida. Examinei, com interesse successivo, successivas cousas sem interesse. Ia a tornejar para uma estrada, já não rua, por onde se sahia da villa para a extensão do campo, quando me bateu na consciencia de ver uma taboleta pequena, velha já, que se encontrava saliente de cima de uma porta fechada. A taboleta dizia,
“Passos, addiador”.
Parei. Li mais uma vez a taboleta. Li-a mais algumas vezes. Tentei extrahir um sentido vulgar e acceitavel do que havia escripto nella. Tentei outras cousas mentaes. Falhei em todas. O comboio tardava ainda quasi duas horas? Porque não saber o que isto era? Avancei para a porta e bati.
Um movimento arrastado de passos surgiu do horizonte interior da casa, approximou-se por um corredor audivel, raiou do outro lado da porta num som de chave que rodeia na fechadura. A chave acabou num tiro brando, um fecho rançoso roçou de onde estava, a porta começou a abrir-se. Nessa altura lembrei-me que não me tinha lembrado do que perguntasse. Puz um sorriso e esperei. Qualquer outro, onde quer que fôsse, não esperaria melhor. Quando a porta se abriu de vez, surgiu-me do espaço que se fez nella um vulto de velho, vestido, na exterioridade proxima, de um sobretudo antigo, com um bonnet de pala de viagem de quem não sahe de casa. O velho usava barba por aparar e tinha olhos vivos e tristes. Olhou para o espaço da porta aberta sem curiosidade, mas, depois, olhou com curiosidade para a minha occupação d’esse espaço.
–
O que deseja?, perguntou numa voz baixa, abstracta, desprendida de tudo salvo do facto necessario de ser voz.
–
Nada, respondi. Quero dizer com isto que desejava saber o que quere dizer a palavra addiador, que se encontra naquella taboleta. apontei a taboleta com a naturalidade de quem aponta para o que não precisa ser apontado. Não havia outra taboleta alli, nem existia, supponho, a palavra addiador, como designação profissional, em qualquer taboleta humana que não fôsse aquella O velho respondeu-me comforme perguntei. Quere entrar? disse.
Hesitei depois de entrar. Não me envergonhei do facto. Succede isto a muitos neste mundo, em muitas coisas que não são casas de aldeia, e, com certeza, sob taboletas muito differentes. O velho fechou a porta, e, sem me dizer mais nada, avançou, seguindo-o eu, pelo corredor da casa, que era longo, e collocado ao centro exacto d’ella, tanto quanto eu podia calcular. Chegou ao fim, que era tapado por uma parede com uma janella pequena e alta, de se não usar, e, abrindo uma porta que estava á direita, fez-me, parando, signal que entrasse, precedendo-o. Entrei. Era uma casa de jantar, de moveis velhos e sem interesse. Na mesma larga, sem toalha nem panno, havia uma garrafa e um copo, que servira. O copo era alto, dos de agua. A garrafa era de vinho. O copo estava vazio, a garrafa quasi vazia. O velho indicou-me que me sentasse, levou a garrafa, e, ao passar por um aparador, tirou de lá outro copo, que poz na mesa. Sahiu do quarto, onde fiquei, sentando-me, sem pensar nem reparar. Em breve tempo– segundos só - voltou com a garrafa cheia, ou, talvez, com outra garrafa, pois esta me pareceu mais verde no vidro claro de que era feita. Sentou-se numa cadeira defronte de mim. Encheu o meu copo e, depois, o d’elle. Bebeu um gole longo, indicou-me que fizesse o mesmo, e eu assim fiz. Depois, deposto o copo, perguntou-me:
–
O que deseja saber sobre a palavra addiador?
Propriamente nada, a não ser o que significa...
–
Em outras palavras, propriamente tudo. Não se tratando de politica, o sentido das palavras é a principal significação d’ellas. Isso então, se quizer.
–“addiador, respondeu o velho, é a minha profissão. Propriamente, eu devia tel-a explicado melhor: sou, especial e particularmente, um professor de addiamento. Devem então ter passado por aqui muitos ministros? Affirmei, perguntando e sorrindo.
Não, respondeu sem sorrir, nunca passou algum. Os ministros, quando addiam, não addiam: atrazam. Bem vê, são homens de acção.
Eu addio deveras e ensino a addiar, a addiar simplesmente, a não-fazer com complexidade, a deixar para amanhã com nobreza. Educo na consciencia da complexidade de todos os actos humanos, na certeza do erro de qualquer gesto, na segurança da derrota de todas as victorias e de todos os conseguimentos. Se a maioria dos homens teem forçosamente que ser vencidos, porque não se educarão vencidos? Porque não educar a humanidade para não ser nada, se a maioria d’ella –que digo? se toda ella nada tem que ser?
Todos temos viveza, intelligencia, imaginação e energia em creanças; ou,
pelo menos, temol-as a maioria de nós. Adolescemos para a perda d’estas
faculdades todas. Adultos, parece que as nunca tivemos. Quem é velho sabe isto muito bem. Ouvi dictos de espirito a pequenitos de cinco annos que os idiotas de quarenta, em que elles deram, não seriam capazes sequer de comprehender. Vi brilhar os olhos com a consciencia da belleza de uma historia, ou de uma coisa, a pequenitas de trez annos, que hoje, aos trinta, teem a substancia mental de um panno de casa, ou a vibração intima de uma tijella com uma escova dentro.
Em adolescentes, tambem, todos tivemos grandes sonhos, ou, ao menos, a maioria de todos. Amámos em imaginação mulheres impossiveis, mas amámol-as... Vencemos, em sonho, obstaculos invenciveis, mas vencemol-os... Quando iamos sendo adultos, qualquer mulher nos servia... Quando ganhámos a estatura de homens, tudo era obstaculo para nós, e o maçador era já intransitavel...
Porque não havemos de educar a humanidade para este seu constante
destino?
Mas não são apenas os que falham que falham. Os que vencem falham todos tambem. Nuns a derrota está escripta na distancia entre o muito que obtiveram e o immenso que desejaram. Noutros a derrota está gravada na qualidade da coisa quasi conseguida, em comparação com a da coisa em que se havia posto o desejo. Enriquece o que preferira ser celebre. Chora o poderoso os seus versos por fazer; e o poeta geme, sobre o seu melhor soneto, a carreira de gloria militar cujo saber lhe animou outrora a alma e até os proprios versos em que a mata.
Mas falhar não é addiar ou
acrescento apócrifo:
Este conto adiado de Fernando Pessoa foi suficiente para me levar a procura do addiador.
Mandei para o outro lado do véu a minha intenção cristalina de o encontrar e pus-me certo que o encontraria, quando o encontrasse. É que os nossos amigos se dão bem com o acaso e é por acaso que tudo acontece, se virmos bem.
Metia-me no primeiro combóio que chegasse e saía numa estação pequena, andava até aos limites da povoação e voltava, ciente do tempo que demora fazer e refazer a teia do destino e grato, cada vez mais fora do tempo. É assim que não sei dizer ao fim de quantos dias encontrei a taboleta que dizia ainda: “Passos, addiador”.
Bati à porta e procurei Passos no silêncio do corredor. Nada. Continuei pelos caminhos de campo que havia por ali e não demorei a ver um vulto que caminhava, com um saltitar contente de quem tem pouco peso.
Reparei que, por vezes, falava sozinho e fazia gestos como se houvesse alguém por ali, que não havia. Viu que eu me aproximava e vi que a expressão séria, descripta no conto, dera lugar a um franco sorriso. Cumprimentei como se faz nas terras pequenas, com um sorriso também e disse: O senhor não será, por acaso, o addiador?
Venha lá a casa; são raros os que me procuram, deve precisar de um copo de vinho.
Enquanto seguíamos, estrada fora, lado a lado, perguntou-me, naturalmente.
O que o leva a querer aprender o adiamento?
Respondi-lhe singelamente que não sabia adiar. Que me parecia obsessiva a minha compulsão para acabar o que fazia, mesmo quando outras coisas mais interessantes me apareciam na imaginação.
Olhou-me, como a avaliar a minha idade e disse.
Se ainda tem imaginação a minha tarefa fica menos complexa. A poucos consegui ensinar a arte e, a mim mesmo, demorei uma vida inteira.
Atrevi-me a dizer, pois o conto era de 1920 e passaram cem anos... O senhor que idade terá?
Não sei, e aí está uma das dificuldades que tiveram muitos dos meus alunos; tinham mesmo um relógio portátil, não lhes bastava o sino. E tinham algo agendado para depois da lição. Ou seja, saíam sem nada ter aprendido!
E voltavam? disse eu.
Alguns voltavam e, desses, a muitos voltava a acontecer o mesmo.
Pois eu tenho tempo, disse, encorajador.
Ora aí está uma das muitas coisas que se não pode ter, cortou o velho, mas com gentileza.
Chegámos à casa, que me pareceu mais parada que todas as casas e Passos (pois, aberta a porta, me desfiz dos restos de dúvida) fazia-me sinal para entrar. Entrei. E notei que avancei pelo corredor sem hesitar, até à porta lá ao fundo.
Entre, sente-se! Confesso que esperava encontrar uma garrafa em cima da mesa, mas pouco demorou para que aparecesse, com dois copos. Bebeu devagar, como quem está em sua casa e imitei-o, sem pressa.
Hesitei em lhe mostrar o conto inacabado, que trazia no bolso, mas mostrei. Leu, com atenção, e disse: -- Acho que sei quem escreveu isso, um dos poucos alunos a quem consegui ensinar algo, o Bernardo Soares.
?
Era um lisboeta franzino que gostava muito de escrever.
Voltou a vê-lo?
Sim. Apareceu muito aflicto porque saíra o livro que sempre adiara diligentemente. Mas descansei-o. O que me mostrou não era o Livro mas um amálgama de fragmentos que mostrara a um amigo e que alguém encontrou numa arca. Disse-lhe que o Livro continuava adiado e lá foi, um bom alumno, sem dúvida.
Mas voltemos ao assumpto que o traz. O adiamento. Os adultos falham sempre a realização dos seus sonhos pela mesma razão que realizar não é sonhar, aquilo que realizam tem, necessariamente, menos encanto que o que sonharam; e isto por uma razão simples: o sonho é cousa viva, está crescendo em complexidade e beleza. Os sonhos autênticos dificilmente morrem, mas, se tal suceder, novos sonhos se alimentarão de alguma forma do que morreu, quais seres vivos. Realizar um sonho é como embalsamar um animal que se estimava muito, compreende?
—Acho que o estou a seguir, disse.
Ao adiar a realização de algo, o projecto vive e, com ele, quem o sonha.
Esse jovem lisboeta empreendeu contar as conversas que comigo tivera — e o que escreveu tem o seu encanto. Mas cedo se apercebeu de que, se continuasse, aquilo que de vivo havia nas nossas conversas lhe morreria.
O mesmo com o Livro. Enquanto adiado, frases são reescritas, outras cortadas, a mesma ordem dos textos vai sendo aprimorada – ao contrário do que for publicado.
—Mas o Livro do Desasocego trouxe-lhe a glória.
A Glória é um desassossego, riu-se. Os mortais procuram-na para se igualarem aos deuses mas estes são-no porque a não procuram.
Os deuses gregos em nada me pareciam livres das paixões humanas mas não argumentei. Seria pagão, o addiador? Seria mais um filósofo procurando (ou que encontrara?) uma forma de evitar a dor? Sonhar, em vez de viver? Mas o que é viver?
Parecia ter-me ouvido e continuou, sem ligar à interrupção. — O filósofo que procura a sabedoria pode encontrar a glória e continuar a busca. Pode “nem mesmo saber que nada sabe”, pode imaginar a busca sendo eterna ou que haja um filão cerca das pepitas que encontre, ou não.
“Quem porfia sempre alcança” pode ser lido como o “alcançar” estar no porfiar mas porfiar é mesmo o contrário de adiar. Não veio cá aprender filosofia, creio.
Eu nem me lembrava de o que fora lá fazer e não quis mostrar a curiosidade infantil que decerto era bem visível.
Os adultos desprezam a criança que foram, continuou, de novo como se me tivesse ouvido, mas ela está mais cerca da sabedoria que todo o conhecimento que arduamente acumularam.
A criança pode estar triste mas não é triste—diria que a nossa língua, ao grafar essa diferença, nos deu asas! Nada é permanente, nem mesmo a sabedoria, que perdemos com a infância e tão difícil é de reencontrar.
Pensei no “Petit Prince” e se o adiador não seria um desses mitificadores da infância que nela arrumam, além da inocência, a curiosidade, a imaginação e até o bom-senso! Perguntei-lhe.
Não. Mas é mais fácil sonhar na infância, quando a vida nos parece infinita. E há menos interferências para ouvir a intuição ... estou-me a lembrar de um alumno que era uma criança grande, um brincalhão sofisticado. Custava-lhe ver a terra abençoada, que acolheu os marinheiros que passaram o cabo das tormentas, nas mãos de uma oligarquia que se escondia atrás da aristocracia inglesa e dominava o Império Britânico. O seu sonho era restaurar a grandeza da Pátria, do seu universalismo, da sua tolerância. Sonhava com uma nova Renascença, dizia que Lisboa estava à mesma latitude de Atenas e imaginava um individualismo civilizado. Sonho tão vasto que demoraria muito. Mas sonhou-o, e imaginou uma arma da qual os militares se nem lembrariam: a literatura. A sua glória literária sonhou-a para um futuro distante, ao serviço do seu nacionalismo “transcendental”, como lhe chamava.
Mas esse seu aluno deixou um livro, acabado!
É verdade! Lembro-me de uns versos dele, que lhe respondem:
“A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra humana, é minha a parte feita:
O por fazer é só com Deus.”
Era astrólogo e sabia que a morte chegava. Deixou um padrão para que lhe seguissem o sonho: que de Lisboa é que se vê bem o mundo. Inventou um “drama em gente” para transcender o bardo inglês que lhes estruturava o império. Um brincalhão genial, um addiador que me deixa orgulhoso.
Mas não quereria ele a glória, disse eu.
Queria, qual marinheiro de Ullisses, que se queria, o cantor da viagem impossível que realizou em sonho; glória ao serviço do sonho addiado.
Despedi-me do adiador, porque o sino me assinalava a hora do combóio!
Encantada com o texto! O acrescento está em perfeita sintonia com o conto inacabado original! Parabéns 👏 brilhante
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