No reino das aparências




No reino das aparências não há lágrimas nem risos
Há, profusamente, a aparência disso 
Se lá entrar, por descuido, um sorriso autêntico, luminoso
As pessoas tremem como se esperassem o trovão
E alçam ou franzem, levemente, os sobrolhos irónicos
Da forma que aprenderam em pequenos, sem saber que a aprendiam
Ou, já grandes, imitando os príncipes do engano

Todos se crêem belos, no reino das aparências
E não sabem imaginar que possa haver beleza
Em quem se não saiba vestir ou comportar

Não há sentimentos nesse mundo
Há aparências de sentimentos
(e aparências de pessoas)
E a arte de salvar as aparências é a única arte que se aprende:
Ser imune aos sentimentos, ser forte, inatingível
Nunca perder a compostura, a aparência de ser gente
De ter nobres, belos, ideais sentimentos
Irreais

Oh! Que mundo confortável!
Basta recusar a Vida e as suas paixões
Aflições, confusões
E estar disposto a magoar quem as padece
E possa estragar o cenário

Não há dor, nesse mundo de ilusões
Ela esconde-se debaixo de enormes tapetes persas
E é calcada sem piedade
Porque a dor é o chão em que esse mundo assenta
Muito acima da humana condição

Coitado! Emocionou-se!
Viu que, em vez de amor lhe tinham ódio
Que não queriam que existisse
Mas era tão fácil ter ficado tranquilo
Bastava que não sentisse amor, que aceitasse a hipocrisia
Neste “coitado” não vai simpatia
— as pessoas ‘simpáticas” não sentem simpatia,
sentem o prazer competente de bem a aparentar e no seu tempo certo—
o que vai é o prazer de não lhe estar na pele
— deve estar doente, só assim se entende
mostrar o que sente, que loucura a sua!—
No reino das aparências os mais competentes
São os fortes, que controlam as emoções,
as usam em seu proveito, e a preceito


Há formas feitas para os abraços, para o prazer de ver alguém
Há formas seguras para tudo, o medo impera
Portanto há muita coragem, muita audácia
E o medo não existe, é para os “invejosos”
Explicação pronta para quem não concordar
Quem puder incomodar

Ninguém levanta a voz, ninguém se zanga em público
O cenário é um vasto cemitério iluminado
Decorado com peças genuínas
E aparências de gente
Que dança com os antepassados acertados
E se sente jovem durante toda a vida

E se alguém disser um conceito
Que não caiba numa frase interrompida
É sangue de cristão-novo, pela certa
Porque a genética explica tudo
Para os frutos das arvores genealógicas



E porém
E porém
Por detrás dessas carapaças de força e aparência
Há gente
Gente que gostaria de viver
De ser franca, de amar sem medo de ser ferido
Gente que gostaria de provar o real
O que está por detrás das aparências
Mas que tem medo, medo do desconhecido
O medo que vê nos outros, nos que não teem nada
(E as vantagens a tirar dessa “fraqueza”)

Haverá momentos?
Dias calmos em que a natureza impera
Em que todas as certezas já feitas se esbatam um pouco
Em que a certeza do valor supremo da aparência
Única realidade a seus olhos
Seja menos certa?
Haverá momentos em que em vez de fingir felicidade
Com carros e piscinas e “gente bonita”
Imaginem o que seria de verdade
Nem ao ataque nem à defesa
Sem pedir vassalagem e sem a prestar
Sem lutar com os irmãos dos cinco continentes
Sentindo o que se sente
Em vez do que parece bem sentir?

Há de haver

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