Entrevista a Alvaro de Campos


Dê o leitor o "desconto" ao engenheiro, o qual, em 1925, não podia imaginar que haveria quem se lembrasse de tentar eliminar um povo inteiro, com o pretexto de que alguns dos seus nacionalistas extremistas (os sionistas) alimentavam a ingenuidade de poder levar a oligarquia internacional a obedecer-lhes.
Publica-se com a devida vénia aos pessoanos que encontraram este escrito talvez à mão (que Fernando Pessoa não tentou publicar, embora, provavelmente, pudesse encontrar um jornal que o fizesse) e o transcreveram em PDF:

[1925]
36 [21124r

 131r]
                      alvaro de campos
            engenheiro naval e poeta futurista
          concede ao □1 um­a entrevista sensacional:
A situação da Inglaterra2 — A situação da Europa — A situação de Portugal
                Pontos de vista originalissim­os

             A estada occasional em Lisboa, vindo de NewcastleuponTyne, de Alvaro de Campos, engenheiro naval da casa Forsyth e um dos mais celebres collaboradores do celebrado “Orpheu”, sugeriu-nos a idéa de inquirir3 o que pensaria do estado actual de coisas em Portugal, sobretudo relacionandoo com­ o da Europa (e isso era, para nós, o ponto mais interessante), um dos espiritos mais originaes e brilhantes do que talvez já se não possa continuar chamando “a nova geração”.

             Encontrámos Alvaro de Campos no Terreiro do Paço, por uma coincidencia feliz, quando elle ia, ainda com tempo, para tomar o vapor para o rapido do Algarve4. E a nossa primeira pergunta, passadas as saudações iniciaes, foi esta:
             — A situação actual em Inglaterra?
             — Muito má industrialmente hoje, e portanto muito má politica
       mente amanhã.
             — A crise industrial deriva de causas algum­as antigas, outras[125r] modernas, de causas algumas economicamente certas, outras econom­icam­ente ficticias. O m­al é radical. Os governos teem­ sido de um­a notavel incapacidade na solução dos principaes problem­as com­ que
77


teem­ sido confrontados — o problem­a industrial propriam­ente dicto, o problem­a do desem­prego, o proprio problem­a do alojam­ento. A GrãBretanha continúa entretendose dem­asiado com­ as velhas ficções politicas, reliquias de um­a epocha extincta. Ainda ha m­uita gente em­ Inglaterra que tem­ no intim­o da alm­a a convicção de que um­a eleição geral é um­a coisa no genero e da categoria de um­a lei da natureza, e de que a “vontade do povo” é frase que com­porta qualquer especie de sentido. O que ha de m­ais extranho nos individuos politicos é o pouco que conseguem­ aprender com­ a experiencia flagrante. Mettem­selhes na cabeça certas idéas, e atravessam­ a vida com­ essas idéas, em­bora a experiencia quotidianam­ente as desm­inta. Desde que o desm­entido não seja violento — e assim­ é em­ todas as sociedades em­ que, com­o a inglesa, se não está em­ estado revolucionario —, o apego ás velhas form­ulas e ás ficções m­ortas persiste, o sonho idiota dos bons tem­pos, em­ que estas idéas eram­ tão falsas com­o são hoje e tam­bem­ ninguem­ dava por isso.
            Os politicos d’estes paizes pacificos e ordeiros dãom­e a impressão, quando se approxim­a d’elles um­ periodo de agitação e de revolução, de hom­ens que quizessem­ andar sobre agua pela razão de a agua apresentar, com­o a terra, um­a superficie lisa. Em­pregam­ a experiencia de um­ passado que foi um­a coisa para lhes servir em­ um­ futuro que é outra coisa. Se lêem­ historia, lêem­a com­o se fôsse so livros, e não coisas que acontecessem­. Estou certo que um­ inglez tem­ a idéa obscura de que guerra civil e revolução são, em­ Inglaterra, “coisas que se deram­ no seculo dezassete”5, com­o se fôssem­ os num­eros das datas, e porisso se não podem­ tornar a dar.
            — Os politicos inglezes, que são intelligentes para os problem­as[126r] secundarios e de um­a estupidez crassa para os problem­as fundam­entaes, andam­ a dizer, e com­ elles grande parte dos jornaes, que a “m­aioria” do


operariado, do operariado “são”, com­o elles dizem­ (a phrase, é claro, não quer dizer nada), não está com­ os com­m­unistas. É de im­pacientar um­ cristal este m­odo de pensar6. Que diabo im­porta que a m­aioria do operariado “esteja” ou “não esteja” com­ os extrem­istas, quando os extrem­istas levam essa m­aioria passiva para onde querem­? Que diabo im­porta que a m­aioria do operariado não concorde com­ o extrem­ism­o, se a m­aioria do operariado não está organizada, e o com­m­unism­o inglez está? Que im­porta a opinião dessa “m­aioria”, se ela pensa politicam­ente, e o com­m­unism­o revolucionariam­ente? Em­ tem­po de paz, e de eleições geraes (e os politicos inglezes julgam­ que as eleições geraes são a chave do universo), está bem­ que um­ m­ilhão de eleitores valha m­ais que dez m­il eleitores.
       Mas em­ tem­po de guerra7 um­ m­ilhão de gente organizada para a paz não vale um­ exercito de dez m­il hom­ens expressam­ente organizado para a guerra. Os politicos inglezes julgam­ que as revoluções não se podem­ fazer quando a m­aioria do paiz não quer; quando as revoluções, para se fazerem­, exigem­ apenas um­a m­inoria audaz organizada para as fazer, e capaz de as fazer. A m­assa do paiz nunca im­porta. Julga alguem­ que o “povo” faz revoluções? Julga alguem­ que o regim­e russo actual é m­aioritario? Porque ha tanta gente estupida no m­undo, o sr. sabe?
             A m­aioria é essencialm­ente espectadora. As proprias eleições, dada a com­plexidade e o custo do m­achinism­o eleitoral, nunca podem­ ser vencidas senão por partidos eleitoralm­ente organizados. O eleitor não escolhe o que quer; escolhe entre isto e aquillo que lhe dão, o que é differente.
       Tudo é oligarchico na vida das sociedades. A dem­ocracia é o m­ais estupido de todos os m­ythos, porque nem­ sequer tem­ caracter m­ystico.

[127r][— O que pensa v. da questão social?]
             — Não ha questão social — creio que é “questão social” que as bestas dizem­ — em­ parte nenhum­a. A Europa é hoje o theatro de um­ grande
79


conflicto, de um­ conflicto ligeiram­ente triangular. Estão em­ guerra,
no m­undo, duas8 grandes forças — a plutocracia industrial e a plutocracia financeira. A plutocracia industrial com­ o seu typo de m­entalidade organizadora, a plutocracia financeira com­ o seu typo de m­entalidade especulativa; a industrial com­ a sua indole m­ais ou m­enos nacionalista, porque a industria tem­ raizes, e liga portanto com­ as outras forças que as teem­, a financeira com­ a sua indole m­ais ou m­enos internacional, porque não tem­ raizes, e não liga portanto senão com­sigo m­esm­a, ou, então só com­ aquella raça practicam­ente privilegiada que, atravez da
finança internacional, se pode dizer que hoje, sem­ ter patria, governa e dirige as patrias todas.
      — Mas as forças proletarias, o bolchevism­o, o radicalism­o?
      — Isso são m­ythos. Não ha correntes proletarias, não ha bolchevism­o (nem­ na Russia), não ha radicalism­o em­ parte nenhum­a. Tudo isso é o avesso da plutocracia financeira, e é provadam­ente dirigido e financiado por ella. Não ha m­ovim­ento nenhum­ de ordem­ radical que não seja m­ovido, em­ ultim­a causa, pelo Frankfurter Bund, ou por qualquer outro organism­o derivado da Internacional Financeira, que é a authentica internacional. Os operarios são todos uns idiotas, e os seus chefes, ou idiotas tambem­, ou loucos; todos são elem­entos essencialm­ente
sugestionaveis, instrum­entos inconscientes de forças de cuja existencia m­uitos d’elles nem­ sequer suspeitam­. No congresso [127v]
recente das Associações de Classe inglezas (Trade Unions), foram­ votadas varias m­oções de caracter extrem­ista; m­as é singular que todas ellas visam­ coisas que deixam­ livre o “capitalism­o” internacional. A execução dos principios consignados nessas m­oções im­portaria a ruina da industria ingleza, e a do im­perio britannico; deixaria porém­ de pé todas as forças
e m­eios de acção do authentico capitalism­o, da finança internacional.
80


       É interessante este extrem­ism­o, não é? Foi precipitada, dissese, a redacção d’essas m­oções; m­as é curioso que a precipitação nunca attingiu phenom­eno9 m­axim­o do capitalism­o, sendo ellas todas dirigidas contra o capitalism­o…[industrial]
            [— E a situação em­ Portugal?][128r]
            — Portugal é um­a plutocracia financeira de especie asinina. É, com­o todos os paizes m­odernos, excepto, talvez, a Italia, um­a oligarchia de sim­uladores. Mas é um­a oligarchia de sim­uladores provincianos, pouco industriados na propria hysteria postiça. Ninguem­ já engana ninguem­10   — o que é tristissim­o — na terra natal do Conto do Vigarioa. Não tem­os senão os vigaristas de praça com­o prova de qualquer sobrevivencia das qualidades de intrujice da nação. Ora um­ paiz sem­ grandes intrujões é um­ paiz perdido, porque a civilização, em­ qualquer dos seus niveis, é essencialm­ente a organização da artificialidade11, isto é, da intrujice.
       “Quem­ não intruja não com­e”; é esta a fórm­a sociologica d’um­ proverbio que o povo não sabe dizer, porque o povo nunca sabe dizer nada.
       De resto, a sociologia tam­bem­ não existe.
            — Assistiu a algum­a sessão do julgam­ento do 18 de Abril?b[129r]
            — Para quê? As farças não m­e divertem­. O 18 de Abril — em­ que, alias, não surgiu um­ unico elem­ento intellectualm­ente superior, nem­
a) Pessoa publicou no diário Sol, n.º 1, Lisboa, 30101926, um­a crónica intitulada «Um­
grande português», que depois reelaborou e publicou em­ O Notícias Ilustrado, 2.ª série,
Lisboa, 18829, com­ o título «A origem­ do Conto do Vigário».
b) Em­ 18 de Abril de 1925 houve um­a revolta m­ilitar com­andada pelo capitãodefragata
Filom­eno da Câm­ara e pelo tenentecoronel Raul Esteves. Em­ 19 de Julho, do m­esm­o ano,
o governo dom­inou um­ segundo pronunciam­ento, liderado pelo com­andante Mendes
Cabeçadas. Em­ 1 de Setem­bro com­eçou o julgam­ento dos oficiais im­plicados no prim­eiro golpe,
term­inado em­ 26 do m­esm­o m­ês com­ a absolvição dos revoltosos. Em­ Novem­bro teve lugar o
julgam­ento da revolta de Julho, que term­inou tam­bém­ com­ a absolvição dos revoltosos.
81


       um­ chefe — porque ser chefe não é ser vencido —, nem­ um­a □12 foi sim­plesm­ente o conflicto entre duas correntes que, com­ egual intensidade, presentem­ente agitam­ Portugal. Ha em­ Portugal hoje duas correntes perfeitam­ente definidas e m­ixturadas13: a que acha insupportavel este estado de coisas; e a que descrê de todos os processos revolucionários para o resolver. Essas duas correntes chocaram­se no 18 de Abril, e venceu a segunda. Eis tudo. O resto é um­a farça de questões pessoaes, que não interessa senão idiotas. Os hom­ens não im­portam­, de um­ lado ou de outro; o que im­porta é as correntes essenciaes, que esses hom­ens, de um­ lado e de outro, de um­a m­aneira e de outra, tem­porariam­ente incarnaram­. Que im­porta que fulano tivesse dado a sua palavra que fazia isto ou aquillo, ou alguem­ supuzesse por ter ouvido dizer a sicrano, que parece que o soubera de beltrano, que essa palavra estava dada?
       O que im­porta é o conflicto do paiz com­sigo m­esm­o, a guerra civil na alm­a nacional. O paiz hoje quer duas coisas ao m­esm­o tem­po: quer m­udança, e não quer revoluções. É a quadratura do circulo a resolver in anima vili.14 a
[130r]— O que ha a fazer, então?
             — Para nos salvarm­os? Adherir anticipadam­ente ao futuro império de Israel. Os judeus teem­ ganha a prim­eira batalha; ganharama em­ Moscovia, com­o alli a perdeu Napoleão. No devido tem­po15 ganharão tam­bem­ o seu Waterloo. A civilização europeia actual está moribunda.
       Não é o capitalism­o, nem­ a burguezia, nem­ nenhum­a outra d’essas form­ulas vazias que está m­orrendo; é a civilização actual — a civilização

a) Nesta altura, um­ intelectual com­o António Sérgio já defendia, em­ «Sobre o julgam­ento
do 18 de Abril» (Seara Nova, n.º 57, 24 de Outubro de 1925), um­a espécie de interregno,
um­a «ditadura preparadora de um­a verdadeira Dem­ocracia». Em­ 28 de Maio de 1926 eclo
diria enfim­ um­a revolta vitoriosa, liderada pelo general Gom­es da Costa e pelo com­andante
Mendes Cabeçadas, m­arcando o início da Ditadura Militar (19261933).
82


grecorom­ana e christã. Já nada a pode salvar. Poderíam­os pensar,
um­ tem­po, em­ nos salvarm­os com­ a plutocracia industrial, m­as com­o, se a plutocracia industrial está cahindo? se está caindo em­ proveito da plutocracia financeira?
     — Mas com­o é que adherirem­os anticipadam­ente ao futuro im­perio de Israel, suppondo que elle venha?
      — Desintegrando propositadam­ente todas as forças contrarias,
exforçandonos por escangalhar a industria nacional, por alluir o pouco que resta de influencia catholica (excepto ritualm­ente, não é de grande coisa), por substituir um­a cultura technica á cultura classica, por desintegrar a fam­ilia no seu sentim­ento tradicional…
      — Mas isso é m­onstruoso! E é v., um­ engenheiro, que falla de
desintegrar a industria?
     — É m­onstruoso, é; a vida é frequentem­ente m­onstruosa. E quanto a eu, engenheiro, fallar em­ desintegrar a industria, não m­e refiro á industria senão com­o industria nacional. Não digo “desintegrar a technica”. Devem­os criar a hum­anidade dos technicos… Algum­a coisa d’isto— antes de toda a orientação neste sentido que tem­ surgido a dentro do bolchevism­o, dirigida de cim­a, de fora, e por m­ão de m­estre, já eu tinha proclam­ado a essencia no m­eu Ultim­atum­ de 1917, publicado no num­ero unico do “Portugal Futurista” nesse m­esm­o anno.
     — Mas isso é bolchevism­o!
     — Não é, e é. Não é bolchevism­o porque nada vae aqui de interesse pelas plebes, pelos operarios, que devem­ ser reduzidos a um­a condição de escravatura ainda m­ais intensa e rigida que aquillo a que elles cham­am­ a “escravatura” capitalista. A m­assa hum­ana deve ser com­pellida a am­algam­arse num­a classe com­posta do actual proletariado e dos restos das classes [130v] m­edias.
83


[131r]
     — Mas o que tem­ o Im­perio de Israel com­ o im­perio dos technicos?
     — Essencialm­ente, nada. Mas o unico im­perio que pode haver é
o de Israel, e a unica m­aneira de realizar hoje um­ im­perio é utilizando a technica, que é o caracteristico distintivo da nossa epocha. Bem­ vê, um­a coisa é im­perio, propriam­ente dicto, outra coisa o processo pelo qual se m­antem­ e conserva.
     [— O processo…?]
     — Todas as civilizações, parece, nascem­ de um­ dom­inio de um­a
nação sobre outra, de um­a classe sobre outra. Um­ velho sociologo, dos m­ais notaveis, em­bora esquecido, Stuart Glennie, expoz ha uns bons trinta annos esta theoria. Deixe ver… Talvez m­e recorde da sua definição de civilização, colhida atravez do exam­e m­ais exhaustivo que se pode fazer dos m­ythos e dos usos prim­itivos.
     — Pareceunos sem­pre que essa historia do “judaism­o” e do perigo judeu era um­a m­adureza de fanáticos…
     — Nalgum­as das suas m­anifestações, é. Mas na essencia não é
m­adureza nenhum­a. Madureza seria, sem­ duvida, a de alguem­ que
no tem­po de Tiberio ou de Nero se lem­brasse de dizer que o Im­perio Rom­ano corria risco de ser absorvido, conquistado, por um­a obscura seita judaica cham­ada o christianism­o.
84


Comentários

Mensagens populares deste blogue

O medo

As dificuldades

Privilégios